Zeca Afonso - Quanto é doce
A minha mãe nasceu hoje há alguns anos antes do que eu. Não interessa bem quantos, já que só há quase vinte e oito a conheci. E mais uns meses, só nossos, em que cresci e ocupei todo o espaço que ela tinha para me dar. E acabei por ocupar tanto que, para mim, ela é assim, toda ela, minha mãe.
Sei que foi filha e garota (porque entretanto aprendi a evolução das coisas), até sei que foi mordida por um macaco quando era pequena porque os meus avós decidiram ir viver para Moçambique. Mais crescida gargalhou na varanda da casa ultramarina (a que ela chamará casa para sempre) porque os vizinhos de baixo estavam a fumar liamba.
Sei que tinha aulas de política depois de 74, em que aprendeu agricultura e ganhou dois pins da Frelimo do apaixonado que queria que ela lá ficasse, quando aquele país viu a sua independência chegar - mas a minha mãe teve que vir embora, porque os meus avós tiveram que regressar. Sei que tem um buraco na alma porque não se sente portuguesa - mesmo quando insisto que é - e sim moçambicana.
Sei que essa indefinição faz dela uma mistura muito especial que não ousa ter classificação, e que no meio do seu percurso se tornou o que a definiu - desta vez de forma muito clara - que foi ser mãe. Minha mãe. A partir daí, já sei bem que ela é: a mãe que se enfiava no meu berço para adormecer comigo; a mãe ovelha que nos idos anos 90 fez uma permanente no cabelo que eu adorava e que me fazia ficar orgulhosa nas festas da escola; a mãe que me encheu de beijos a cada segundo e que nunca deixou de me dizer que me ama; a mãe que deixava bilhetes presos na minha roupa com um alfinete quando me deixava em casa da minha avó Conchita a dizer "Buelita, cheiro muito a alho"; a mãe que tinha toda a paciência do mundo para ir ao videoclube e esperar que eu escolhesse o mesmo filme outra vez para levar para casa e que me deixava ser mariquinhas e não andar de bicicleta ou fazer outras actividades igualmente perigosas.
A minha mãe faz anos. Anos de pequenos momentos acumulados e de grandes momentos registados. Anos de beijos no meu pescoço (o pescocinho dela), de me chamar "passarinho", dos longos banhos com a pata de borracha que ajustava três patinhos no dorso (isto já não acontece há muitos anos, atenção).
Anos de saber o que dizer para me acalmar e de saber também o que dizer para me irritar. Anos de saber o que se passa por detrás dos meus olhos mesmo sem os ver. Anos do cordão que na verdade nunca se corta, que mantém sempre infinito esse vaso que traz e leva tudo o que há neste mundo para trazer e levar, de bom e de mau, que ensina que há ligações que não merecem, nem têm, explicação.
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