terça-feira, junho 16, 2015

Dia treze de junho de dois mil e cinco

Quis escrever-vos no dia certo. Mas o cansaço do quotidiano fez com que passasse a data. Há dez anos - estudava eu no ensino secundário - acordei com a rádio no despertador, como habitual. Hora de notícias. Meio a dormir, pensei ouvir ainda acerca da morte do Vasco Gonçalves, que tinha assombrado o fim-de-semana anterior.

Era segunda-feira e só alguns segundos depois percebi que se tratava do Álvaro, e já não do Vasco. Demorei mais alguns segundos a processar a informação. O Álvaro tinha morrido.

Era já militante da Juventude Comunista Portuguesa, mas nunca conheci o Álvaro. Ao contrário de dezenas de pessoas que conheço, nunca o vi. Nunca me cruzei com ele em nenhuma iniciativa, não tenho fotografias em criança a cumprimentá-lo - nem sequer sabia quem ele era enquanto fui criança.

Não me lembro dos debates na televisão e cresci sem saber sequer o que era o PCP. O que conhecia, então,  dele, e o que conheço, hoje, são fragmentos do que me contam, do que li sobre, dos tantos registos fotográficos e do que li dele. Não bastará para conhecer alguém, mas há alguns que podemos conhecer apenas dessa forma.



Dois dias depois, rumei a Lisboa, como milhares de outros, para ir ao seu funeral. Lembro-me como se tivesse sido o ano passado - mas foi há dez. Recordo-me que ia uma camarada no autocarro a bordar um pano com uma foice e com um martelo - antes de ele avariar e ficarmos apeados na autoestrada à espera de outro. Um ambiente misto entre silêncios constrangedores e a alegria normal (e as desventuras também) de uma viagem a Lisboa para uma luta, uma manifestação.

Partidos da Praça do Chile, a enorme multidão que acompanhou a última marcha do Álvaro parou apenas no cemitério do alto de São João, num desfile de bandeiras do Partido, punhos erguidos e palavras de ordem. "A luta continua". E continuou mesmo durante os segundos que demorou a cremá-lo. Foi o mais longo silêncio desse dia, seguido pela mais emotiva Internacional que já ouvi cantar. A luta continuou.

Ao longo dos últimos anos - e porque a cronologia dos tempos assim vai ditando - estive presente em funerais de mais camaradas. Mais ou menos próximos. À excepção do meu avô paterno, enterrado na sexta-feira santa há dois anos (por quem os sinos não puderam dobrar pelas regras da data), todos os funerais a que fui foram sempre de alguém mais próximo dos meus mais próximos do que de mim.

Todos sabemos que as cerimónias fúnebres são sempre dolorosas; horas de uma tensão tenebrosa no momento de deixar partir quem amamos. Mas há memórias que nos ficam gravadas para sempre. Deixando de parte as mais pessoais que tenho, centro-me numa que supera a tristeza do ritual. O acompanhar, até ao último momento, quem acompanhámos e nos acompanhou em vida.

Assim foi no funeral do Álvaro: à sua medida. Entre os trabalhadores e o povo, em luta. Assim foi nos outros funerais de outros camaradas: com a bandeira do Partido sobre o caixão, carregado pelos seus companheiros - os mesmos que, ombro a ombro, em vida, lutaram lado a lado.

Não sei se vos consigo explicar o quanto esta imagem pode encher um coração. Porque cabe nela tudo o que é essencial: a lealdade última entre tudo o que é complexo nas relações que temos com todos durante as nossas vidas. Esse último adeus que não precisa de muitas palavras, porque sabemos, enquanto cerramos os dentes e aguentamos as lágrimas nos olhos, que a luta (e nela a batalha por todos os dias) continua.









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