quinta-feira, maio 21, 2015

Das conversas públicas

Quem me acompanha no facebook sabe que um dos meus assuntos preferidos para partilha são as minhas experiências nos transportes públicos colectivos. Mais especificamente - e porque são os únicos que utilizo numa base diária - os transportes urbanos de Braga.

Ora hoje lembrei-me que, dado que tinha começado um blog, convinha não o enterrar logo após o primeiro sinal de vida. Assim sendo, pensei ainda dentro do autocarro que me leva até às costas da minha casa (certo, tenho uma paragem que consigo ver pela janela do quarto - o que mesmo assim não me impede de volta e meia perder a carreira por míseros minutos) que hoje devia partilhar convosco a conversa que ouvi enquanto ainda aguardava na paragem (situada, ao contrário da minha, no que todos os que vivem pelo menos a 2 minutos do centro chamam de "a cidade").

O que começou por ser uma conversa que parecia inofensiva e que partiu de um comentário de uma das senhoras habituais no autocarro das oito, que notava que uma outra vinha mais tarde do que o habitual, terminou com as minhas veias a tentarem escapulir-se pela pele do meu pescoço.


Tudo porque a segunda referida se tinha atrasado já que aproveitou para ir ao Pingo Doce, que fica ali perto, dado que houve uma "zaragata" (expressão dela) nas filas. Sublinho que a expressão é dela porque eu chamaria zaragata a um acontecimento muito maior do que uma "hora de ponta" no supermercado e alguma demora de quem está na caixa ao tentar registar alguns produtos como promoção e outros não (sim, é nisto que dá a fúrias das promoções, uma brutal confusão na hora de pagar).

Nisto um cavalheiro que já ali aguardava há algum tempo decidiu explicar que a culpa era toda daquelas "mortas" que ali trabalham. Sim, "mortas". O sujeito até deixou as compras para trás porque não quis estar à espera! Porque elas, claramente, não gostam de trabalhar (esqueceu-se de acrescentar que o mais provável é que não gostem de trabalhar ALI), e uma vez até disse a uma outra trabalhadora, desta vez no Continente, para ela se despachar e se não sabia fazer as coisas rápido devia ir embora para dar lugar a quem quer mesmo trabalhar.

Adivinharam bem os que acharam que foi nesta altura que as minhas veias começaram a palpitar. Não suporto este discurso em nenhum contexto - que quem não trabalha não quer trabalhar; que os que estão a trabalhar se se queixam deviam dar o lugar a quem quer trabalhar; e derivados - mas ainda mais me irrita quando ele se imiscui na conversa do dia-a-dia, a que temos com estranhos na rua, porque demonstra uma falta de solidariedade tremenda, para além de uma falta de humildade gritante.

Quando vou ao sapateiro e ele me diz que posso ir buscar o que deixei dali a dois dias, nunca me passa pela cabeça questioná-lo: "Daqui a dois dias? Mas isto é só fazer aqui um pequeno reparo...Isto deve ficar feito em dois minutos!". Por que raio aquele se cavalheiro se julga no direito de questionar a velocidade com que aquela (ou outra, ou outro qualquer) trabalhadora exerce a sua tarefa diária, parte do seu trabalho? Está fácil de perceber que trabalhar numa caixa de supermercado, receber mal, sair a tarde e a más horas (sim, o senhor deixou as compras para trás para não perder o autocarro, mas quem lá está não pode deixar a caixa aberta porque tem uma consulta às cinco e meia) e ainda ter que aturar os pedagogos sociais dos nossos tempos não consiste propriamente no que chamamos um estímulo positivo, quanto mais uma forte motivação!

Este cavalheiro leva, claro está, um Zero bem redondo.

1 comentário:

De um a zero?