quarta-feira, dezembro 28, 2016

Quanto soma uma década?

Há dez anos viajava para Londres, que me acolhia na aventura que tinha decidido traçar longe de casa. Tinha-me mudado em Outubro, para tirar um curso que ficou pendurado e que só anos depois terminei, de volta à minha cidade dos arcebispos.Viajava há dez anos porque regressava do primeiro Natal de saudade, para terminar o ano na cidade grande que me acolheu e que me aturdia de um profundo sentimento de formiguez.

Formiguez eram várias coisas ao mesmo tempo que estar na capital do Reino Unido me fazia sentir: ser formiga de tão pequena no meio de tanta gente; o formigueiro que me causava quando dava por mim a pensar em Braga e em como consegui ir ali parar e ainda formiga pela construção diária, passo a passo, de uma vida muito minha e muito diferente da que conhecia até ali.

Viajava há dez anos com a Mary Jane, que decidiu vir comigo a Londres para a passagem de ano. Como praticamente todos os momentos que ainda passamos juntas, a viagem foi de muitas gargalhadas e histórias que ficam para contar e recontar para sempre. Dez anos passaram desde o dia 31 em Westminster, a ouvir as badaladas da meia-noite no Big Ben e a sonhar com a vida cujas portas se abriam para mim ali, com promessas de um futuro cheio de formiguez e conquistas nunca antes imaginadas.



Uma década depois, essas portas trouxeram-me a sítios muito diferentes daqueles que, naquele dia, imaginei para mim. Tenho a sensação, ao recordar essa passagem de ano, que foi noutra vida e, pensando bem, foi mesmo. Há dez anos eu tinha outra vida: tinha 18 anos e o futuro todo por construir. Tinha uma esperança e uma confiança inabalável em tudo, enquanto hoje deixo as duas para os grandes desígnios da História, e não tanto para mim.

Há dez anos achava que o mundo me pertencia e viver em Londres fazia com que sentisse que era mesmo possível conquistá-lo, desde que continuasse a querê-lo. Mas há dez anos atrás não tinha ainda percebido que as minhas raízes me puxavam mais para casa do que alguma vez imaginei, nem que a minha alma era e é tão corruptível como qualquer outra. Tinha a inocência das crianças porque ainda não tinha provado todos os sabores desta jornada dura que é viver.

Dez anos depois, mantenho apenas a intensidade com que vivo as coisas, para o bem e para o mal. E ao longo desta década muitas coisas correram mal. Hoje estou na minha cidade, donde não planeio sair tão cedo (nem sequer para férias!), presa a uma rotina que se tornou minha sem eu realmente querer, presa a uma versão nova de mim que ainda estou a aprender a aceitar e cuidar. Não nego que, se muitos dramas assolaram estes últimos dez anos, muitas alegrias foram também essenciais na minha história, e que são elas que me fazem ter a certeza que é mesmo assim que se faz o caminho: caminhando aos poucos, que nem formiga, que nem fazia em Londres.

Feliz, ainda assim, momento em que, há dez anos, saí do meu ninho. Vou fazendo bom uso das ferramentas que estar realmente sozinha me deram. Verdade que hoje, aqui, me sinto muitas vezes mais sozinha do que me sentia quando passeava pelas ruas do centro da cidade de Londres, dominando as linhas de metro como se fosse viver para sempre. Lá sentia saudades dos meus, imaginava muitas vezes que andavam à descoberta comigo, ou que lhes mostrava os caminhos que já tinha tornado meus tão longe da minha vida normal. Vivia duas vidas, quase, e não me sentia infeliz em nenhuma. Agora vivo só uma, e sinto-me infeliz muitas vezes, embora tenha aprendido que é assim mesmo que tem que ser: não podemos ter uma vida para onde fugimos quando na outra nos falta alguma coisa.

O que sinto falta sei bem. Sinto falta de quem eu era, ou fui, há dez anos atrás. Provavelmente vou sentir sempre, porque mesmo que recupere a alegria instintiva que me invadia na altura a toda a hora, nada apagará estes dez anos nem o que construí com eles. Para o bem e para o mal, como em tudo, temo-nos como somos, e mais vale construirmo-nos do que, na tentativa de manter tudo igual (o que nunca é possível, por mais que me custe ainda a admitir) irmos destruindo tudo quanto precisamos para continuarmos a formigar.

Um.

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