Fez ontem 81 anos. Mas faz nove anos que comecei, sem saber, a perdê-la. Passei ontem por baixo do apartamento que, no meu coração, ainda é dela. Cada passo na Avenida da Liberdade traz-me uma nova memória. Os caracóis cheios de laca que me deixava fazer na cabeleireira sempre que ia com ela. As roupas da mala vermelha, vindas de África, nunca mais usadas: a saia preta, que me dava pelos pés, e que me fazia sentir uma cigana que viaja pelo mundo. Assim me faziam sentir as noites passadas em casa dela: a viajar pelo mundo.
As valsas que me ensinava a dançar no "quartinho", vindas do móvel que hoje descansa na minha garagem, com vinil em cima e cassetes por baixo. As tunas, em castelhano. Esta música, "Silencio", do Ibrahim Ferrer, cantada por uma tuna de Santiago de Compostela, numa gravação em cassete que ela guardava. Acho que a fazia sentir-se em casa. E hoje, ao ouvi-la, faz-me sentir a mim. Em casa dela.
Os carros a descerem a Avenida noite adentro, o som da televisão lá longe, com ela adormecida no sofá. Os tapetes do quarto da minha mãe e da minha tia, que na altura era como meu, acabados de aspirar, que marcavam as minhas pegadas. Os banhos de imersão com ela, com o gel de banho "Magnum" e a água de colónia da "Caperucita Roja".
Os dramas, as discussões, os telefonemas para a minha mãe me vir buscar a meio da noite. As gargalhadas, as asneiras, as histórias repetidas da sua infância. As rosas brancas que roubava numa casa perto da Igreja de São Lázaro para me oferecer, ou as dezenas de pássaros ("Paquitos" e "Ernestos") que enterrávamos nas árvores da Avenida, juntas.
Outra música tocada pela tuna: "Clavelitos". Quando ainda não tinha idade para saber o que ouvir, e quando ela não imaginaria que eu ia um dia transformar-me em cravo. E que, de me proibir de cantar a "Grândola Vila Morena" quando eu não sabia bem o que ela representava, justificando que "essa maldita música que nos obrigou a sair de Moçambique", passou a votar alegremente na CDU.
Infinitos momentos que se atropelam sempre que penso nela, garrida e barulhenta, com sapato e carteira a combinar no seu conjunto de saia-casaco. Os lábios bem vermelhos - e grande parte das vezes até os dentes - que acabavam sempre marcados nas minhas bochechas. Abraços até ficar sem ar todos os dias, quando ia para a escola, "porque nunca se sabe quando é a última vez que nos despedimos". Eu ria-me dela, tola. É claro que sabemos sempre quando são despedidas a sério!, pensava eu.
Foi então que o tempo da minha despedida chegou, mas sem nunca imaginar que nunca recordaria a última vez que lhe dei um desses abraços, que a afastei depois de sufocar um pouco e levei com um beijo já a fechar a porta do elevador. Quando regressei, já ela tinha começado a ir, a perder-se e a perder-nos. Hoje, de todas as coisas que me apertam a garganta num nó cego, não conseguir enfrentar a paz e a calma que tomaram conta dos dias dela é a pior. Vê-la, beijá-la, e ver aqueles olhos pequeninos, a quererem perguntar, provavelmente, se me recordo. As lágrimas que já não são de crocodilo, como tantas e tantas vezes durante toda a minha infância. O único drama, agora, é que ela seja calada.
De todas as vezes que passei vergonhas na rua por ela gritar "Barbarita" e toda a cidade ouvir. De todas as secas que apanhei na adolescência a fazer os mesmos trajectos que antes me davam tanto prazer, mas que de repente se tornaram desinteressantes. De todas as tardes que passei sozinha na casa dela, a ouvir cassetes gravadas com Spice Girls e Vengaboys, a dançar que nem uma descompensada. Tudo fazia parte da liberdade da nossa relação.
Comigo, ela não era mãe, não era pai, não era educadora. Era mulher, era alegre, era travessa. Com ela eu não tinha regras, para além das nossas, estabelecidas tacitamente na soma dos dias que passávamos juntas. Com ela podia comer uma pizza da Regina logo a seguir a lanchar um batido de morango de uma marca que não me recordo - mas cujo sabor ainda sinto nos lábios - comprado no supermercado do CAT. Comigo não havia nada para além de liberdade e de amor. Não havia provas, não havia expectativas, só a de estarmos e sermos felizes uma com a outra - ou de nos enervarmos e ser tempo de gritar "arrebenta a bolha", pegar no telefone vermelho (sim, o telefone era vermelho, quem sabe próprio para as emergências que só a nossa família era capaz de encenar) e chamar a minha mãe.
Quando começou a ir-se embora, aos poucos, perdendo a noção da vida à volta dela, apanharam-na uma vez de pantufas e robe, a atravessar a Avenida da Liberdade sem olhar para os carros, de pássaro morto na mão. Esta imagem corta-me o coração em dois. Parti para a deixar sozinha. Para que cumprisse o nosso ritual de enterro de um "Paquito" ou um "Ernesto", sem mim. Parti e ela partiu. Quem sabe as duas perdemos o coração nessa altura. Quem sabe a nossa aliança nunca podia ser quebrada dessa maneira. Quem sabe um dia possa eu livrar-me desta culpa de não ter respeitado a nossa união sagrada, e de não me ter sabido despedir dela como ela insistia em fazer. Quem sabe ela saiba, de alguma maneira, que não só eu lhe trouxe uma alegria desmedida à vida, quando lhe fui parar aos braços, logo que nasci, como ela encheu a minha.
Feliz aniversário, "buelita" Conchita. Feliz aniversário, Angela de la Concepción do Pazo García Seco (sim, porque se há coisa na vida de que nunca abdicarias, seria do meu avô).
Da tua Barbarita.
o tempo passa, implacável, sem ser culpa de ninguém
ResponderEliminarIntensamente comovedor.
ResponderEliminarIntensamente romântico.
Intensamente Amor.
Uma homenagem muito bonita e sentida.
ResponderEliminarÉ muito bom ter uma neta assim...talvez porque teve uma Avó assim...
Um beijo por partilharem comigo.
Bernadette
Nota 10. Como me lembro bem da tua Avó, sempre bem arranjada, da sua sabedoria de beleza, do seu riso. Uma descrição incrível. Parabéns por seres sua Neta.
ResponderEliminarIsabel Garcia Martinó
Todos os sentimentos expostos de alma aberta....
ResponderEliminarFiquei emocionada e enternecida....
Beijinho meu para a autora, para a buelita, e um muito especial para a minha querida
Carmencita.